mundano

mundano

“Não sei se um robô conseguiria assistir a uma mulher sentada” Natália começa a falar, retomando uma conversa de antes, mas é interrompida por Felipe. 

“Ou assistir a outra robô” ele sugere, enquanto ela, que está sentada ao seu lado, usa a firmeza de seu olhar para expressar a seriedade de seus argumentos. Ele desvia o rosto, e observa desinteressado a movimentação ao redor deles, enquanto ela continua. 

“Ok. Não sei se uma robô conseguiria assistir a outra robô sentada numa poltrona, uma poltrona daquelas grandes que permite ela desabar, e ali ela fuma um cigarro enquanto remoe uma desilusão amorosa ouvindo o disco de vinil de alguma cantora que canta sofrido sobre amores perdidos. Não sei se um robô assistiria a essa cena e conseguiria encontrar beleza em toda a tristeza que tem nela.”

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peras imperfeitas guardadas na geladeira

peras imperfeitas guardadas na geladeira

um lanche e uma latinha de coca-cola sem açúcar na mesa, a vitrola toca uma música que eu ouvia em 2012, na minha fase indie folk. eu fui uma criança dos anos 90, um adolescente nos anos 2000, e ainda assim discos de vinil estão presentes na minha memória em dois beijos. lembro do gosto das bocas, lembro das músicas, o que eu senti nas duas ocasiões foi tão único, impossível de se repetir, que é como se eu pudesse tocar, ainda hoje, na sensação.

agora à noite foram quatro tentativas de acender uma vela com os fósforos da caixa que guardo na minha gaveta, onde também deixo as canetas. os dois primeiros acenderam, mas não queimaram o pavio, o terceiro quebrou na metade quando o risquei na caixa, na quarta tentativa consegui. agora tenho um pequeno cemitério de fósforos.

mais cedo vi uma senhora caminhando sozinha e pensei eu não quero chegar na velhice como ela. aquilo me compadeceu, não porque ela estava sozinha – o último ano me fortaleceu no enfrentamento à solidão – mas pelo pesar que ela levava em seu rosto. em algum momento a vida deveria deixar de ser dolorosa. 

me pergunto o que as pessoas sentem enquanto andam sem companhia por aí, saindo do turno noturno na enfermaria de um hospital, que desde o começo da pandemia virou campo de batalhas diárias, cruzando os braços sobre o corpo para se proteger do vento gelado da noite de outono, caminhando em passos rápidos em direção a casa. em dado momento paro de imaginar, porque toca num ponto que dói.

da mesma forma que a música e o disco girando trazem à tona coisas que, percebendo agora, ainda doem em mim, e desejo uma playlist utópica que me faça não pensar em nada, não lembrar de ninguém. 

mesmo sabendo que eu faria tudo de novo.

droga.

poemas incompletos

poemas incompletos

digo para onde acho que devemos ir, você me responde que já sabe. é claro. soube quando pôs suas mãos sobre meus ombros e seus olhos castanhos fitaram os meus. vendo por mim você viu a si e soube, naquele instante, o caminho.


uma manhã de preguiça e a gente não tem hora
sua presença na cama faz meu coração bater leve, seguro
e consigo fazer nada, somente ouço o barulho da chuva que cai
num outro lugar, você veste as cores do céu 
eu falo de girassóis gigantes, maiores que homens
você me leva pela mão, você me faz íntimo seu
contando cada história sua, cada coisa que você diz
me faz sentir como se agora eu soubesse tudo
e paradoxalmente quanto mais eu sei do que a vida é
do que a vida pode ser
parece que mais distante eu fico 
de estar completo
eu sozinho, eu já não sei de nada 
eu digo baixinho coisas de amor 
como quem espalha sementes ao vento
na esperança de que floresça um recomeço.


estou num barquinho a vela, sou somente eu no meio do oceano sob dias e dias de céu azul de um verão que apesar de familiar eu não posso tocar, é só saudades, sou só eu, como o protagonista do livro da Ursula Le Guin, e quando chega a noite eu me enrolo em um cobertor, ponho os fones de ouvido tocando um programa de rádio português que tenho gravado e, enquanto o sono me leva, não consigo distinguir o que é poesia dos apresentadores e o que é apenas sonho meu.


foi que nem estar na varanda, aquela mesma varanda das noites infinitas, e sentir um vento que diz à pele das canelas descobertas que o verão acabou. a gente soube na hora.

how did you find me

how did you find me

As marcas de gordura dos dedos no livro 
O gosto da cerveja e do cigarro na boca

Num videogame de puzzles sobre perspectivas você começa a achar graça em não ver qualquer sinal da solução
Da mesma forma sente toda tristeza no exato instante em que se depara, em um entendimento repentino, com uma certeza 

Os rituais em que busca algum momento de paz
O frio que sente na pele ao sair para o quintal na manhã

Pensa em deixar livros espalhados pela casa na esperança de que sejam encontrados
E sabe que contar e ouvir histórias é tudo que nos sobrou enquanto esperamos por um outono bonito.

quietinho

quietinho

ele que aparece pega sua mão e diz vem, eu te levo daqui.

o arrepio que percorre a pele quando lê o verso que traz numa pancada uma memória intensa, que ainda não foi, e talvez nunca seja, inteiramente compreendida, e que o faz fechar o livro.

o anseio pelo toque que chega e desmancha todos os nós pelo seu corpo, mudando tudo que se é. 

conversando na varanda sobre essa cidade que eles vêem dali de cima, mas na qual já não podem tocar, e que também não pode mais tocar neles, nem percebem o tempo passar e a bebida subir. 

senta sozinho na calçada depois do acidente, nenhum osso quebrado e apenas alguns arranhões, ri nervoso, segurando na garganta um choro que vem, como se o susto trouxesse para superfície toda angústia daqueles dias. 

primeiro vem e arrebata como uma das fúrias da natureza, deixa o corpo sem saber o que fazer com tantas sensações que pedem atenção naquele mesmo tempo. em seguida vem o alívio, de quando se encontra aquilo que esperava achar, mas que exigiu tanta caminhada, a água gelada da correnteza passando por pés cansados. a gente fica assim à deriva, numa bobeira, sem se preocupar com nada. por fim, a ressaca te põe deitado numa cama com uma sensação agridoce, de quem tem que lidar com uma dor de cabeça enquanto o corpo ainda lembra do toque de quem não está ali, naquele agora. o movimento se repete.

deitado sob a janela, o céu nublado de um dia frio, o quarto escurece com o anoitecer mas não acende as luzes, fica ali, quietinho.

escreve com uma caneta preta pelo braço esperando que ele encontre a mensagem.

está tudo bem. e se não está, é porque ainda vai ficar.


A última parte é uma referência a uma história contada por meio do Twitter chamada Arlindo. Recomendo imensamente: https://twitter.com/ilustralu/status/1338983425185902611